A origem dos calendários das semanas de moda e o vírus da ganância.

Moda

Além dos apelos à sustentabilidade, consumo consciente, moda ética, étnica, genderless e inclusiva, umas das discussões main stream do momento e que ganhou mais corpo com a pandemia é sobre o futuro dos desfiles de moda e sua sistematização no formato de coleções primavera-verão, outono-inverno, Cruise, Resort, etc.

A pandemia do coronavírus abateu-se fortemente sobre a moda no mundo, e vem mudando vários conceitos e hábitos das pessoas e empresas. Um deles é exatamente a discussão sobre o papel dos desfiles de coleções no formato atual.

Mesmo antes da COVID-19, muitos dentro do setor já clamavam por uma mudança. Designers respeitados como Dries Van Noten e Andrew Keith, CEO da varejista Lane Crawford, dizem que a crise sanitária deu o ensejo à necessária discussão.

O consagrado designer Marc Jacobs anunciou em maio, que não iria produzir a última coleção que desenhou, e não lançaria uma nova para a próxima saison. Por sua vez, a casa Saint Laurent também não mais participará das semanas de moda bianuais, e suas coleções seguirão seu próprio cronograma ditado por um ritmo menos alucinante.

São decisões sábias, em consonância com o momento de reflexão pelo qual passamos. A moda é parte da economia criativa, malgrado tenha se transformado nesse imenso conglomerado trilionário gerido por donos das maiores fortunas mundiais.

A divisão em saisons, no entanto, pode de fato não mais fazer sentido atualmente.

Muito antes de Charles Frederick Worth, o britânico considerado o pai da alta costura criar as coleções sazonais no século XIX, o poderoso ministro das Finanças de Louis XIV, Jean-Baptiste Colbert inovava ao determinar que novos têxteis aparecessem sazonalmente, duas vezes por ano, encorajando as pessoas a comprar mais deles, em um cronograma previsível. Estávamos no século XVII.

As estampas costumavam ser rotuladas como hiver ou été para o inverno ou verão, com adereços correspondentes como guarda-sóis, máscaras faciais e leques para o verão; para o inverno, havia peles, capas e gorros para homens e mulheres. Sedas leves foram reservadas para o verão; veludo e cetim para o inverno.

Independentemente do clima, a temporada da moda de verão começava pontualmente no Pentecostes (o sétimo domingo após a Páscoa; ou seja, de meados ao final de maio); e as roupas de inverno passando a ser vestidas em 1º de novembro, Dia de Todos os Santos. Humilhação suprema era imposta à mulher que aparecesse na corte com um vestido de verão no dia 2 de novembro. Era a moda alinhada com os objetivos econômicos do reino.

Outros países notaram os bons resultados dessa estratégica obsolescência programada para suas finanças, e começaram a estabelecer cronogramas sazonais semelhantes a seus próprios tecelões.

Era evidente, portanto, o objetivo econômico de impulsionar o maior consumo de roupas e o rápido descarte, por meio da troca constantes de figurinos e acessórios de acordo com a estação do ano.

Em brevíssimo histórico, estas são origens da divisão do ano da moda em estações: a estratégia de aumentar o desejo, que incrementa o consumo, que faz girar a economia.

Porém, em um mundo de superexposição, de imagens que caem no esquecimento em menos de um segundo, onde o consumo desenfreado e irracional, o anseio do lucro pelo lucro nos legou um planeta doente, literalmente, o repensar na indústria da moda é mais do que um imperativo. Temos de lutar contra o “vírus da ganância”, nas palavras de Li Edelkoort.

Ana Fábia R. de O. F. Martins – Advogada, Especialista em Direito e Negócios Internacionais e Moda.

1  Moda, arte indígena e geração de renda

A pandemia está representando uma oportunidade de exercer a criatividade, se reinventar e buscar geração de renda por meio da moda.

Os Sateré-Mawé habitam a região do médio rio Amazonas, em duas terras indígenas, uma denominada TI Andirá-Marau, localizada na fronteira dos estados do Amazonas e do Pará, que vem a ser o território original deste povo, e um pequeno grupo na TI Coatá-Laranjal da etnia Munduruku.

Inventores da cultura do guaraná, os Sateré-Mawé domesticaram a trepadeira silvestre e criaram o processo de beneficiamento da planta, possibilitando que hoje o guaraná seja conhecido e consumido no mundo inteiro.

O sustento das índias, organizadas na AMISM – Associação das Mulheres Indígenas Sateré-Mawé, até o advento da pandemia do coronavírus, vinha das vendas de artesanato local, impulsionado pelo turismo na Amazônia. Porém, com a crise sanitária o faturamento caiu a praticamente zero.

Uma ONG do Reino Unido resolveu doar algumas máquinas de costura, e auxiliou no treinamento das mulheres para operá-las ensinando-as a confeccionarem máscaras, capacitando-as para um novo ofício e auxiliando a criar uma fonte alternativa de renda.

A partir daí, as indígenas passaram a estampar seus grafismos tribais nas máscaras, e, como a aproximação com a ONG inglesa deu-lhes visibilidade e acesso a um canal de vendas de maior alcance, o sucesso foi absoluto, gerando renda para a tão necessitada comunidade, e serviu também a divulgar a bela arte das pinturas étnicas. A comunidade já vendeu cerca de oito mil máscaras desde abril.

Segurança, moda, patrimônio cultural, geração de renda em uma bela ação colaborativa. É em momentos desafiadores que a criatividade floresce.

@amism_sateremawe

2. Louis Vuitton e o desfile da coleção masculina na China

Após os cancelamentos de desfiles na semana de moda de Paris, a centenária e tradicional marca de luxo Louis Vuitton, cuja linha masculina tem à frente o aclamado designer Virgil Abloh, o primeiro estilista negro a assumir a direção criativa da casa, a marca abandona o calendário tradicional e apresenta sua coleção masculina primavera/verão 2021 em Shangai, para uma seleta platéia de mil e quinhentos convidados.

Acusado de cópia por Walter Van Beirendock, designer da marca homônima, integrante do grupo conhecido no mundo fashion como The Antwerp Six, do qual também fazem parte os não menos renomados Martin Margiela, Dries Van Noten e Ann Demeulemeester, Virgil Abloh, o criador da marca de streetwear Off-White que vem se mostrando um estrondoso sucesso, respondeu se tratarem de falsas acusações, fruto de uma tentativa de desacreditar seu trabalho, justificando, ainda que sua inspiração foi a coleção masculina desfilada 2005 pela Louis Vuitton, que à época tinha Marc Jacobs como Diretor Criativo.

A verdade é que Abloh, muito bem sucedido com sua marca Off-White, deve ter desagradado a muitos nomes influentes do mundo da moda quando foi convidado a assumir a direção criativa de uma marca que é um ícone mundial de luxo, tradição, exclusividade e elegância. Não é de se duvidar que muitas das críticas possam ter origem em nada mais que puro preconceito racial.

Por outro lado, a instauração de uma batalha judicial parece improvável, já que ainda que se entendesse haver elementos de similaridade entre as criações dos dois estilistas, as meras ideias ou inspirações, de regra, não encontram proteção na legislação que rege a propriedade intelectual. No Brasil, a Lei nº 9610, em seu art. 8º, inciso I traz menção expressa a respeito.

Frase da semana: “Eu não vendo produtos de beleza, eu vendo esperança” – Elizabeth Arden

Ana Fábia R. de O. F. Martins – Advogada, Especialista em Direito e Negócios Internacionais e Moda.

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